quinta-feira, 21 de março de 2019

UMA REALIZAÇÃO TARDIA

“Se quero definir-me, sou obrigada inicialmente
 a declarar: “sou uma mulher”.
Essa verdade constitui o fundo sobre o qual
se erguerá qualquer outra afirmação.”
Simone de Beauvir

I – COMEÇO

            Eu nunca me afirmei como mulher. Os joelhos ralados e as roupas sujas pareciam um escudo certeiro contra a feminilidade. A fragilidade sumia quando eu era escolhida para completar o time dos meninos nas aulas de educação física. Parecia que os problemas cor de rosa não conseguiriam me encontrar se eu me camuflasse bem no time adversário. Minha mãe tem sinestesia, eu sempre fui amarela – um camaleão em um mundo binário. Herdei isso dela: nunca entendi porque era óbvio para mim que algumas cores eram mulheres e outras homens se eu podia ser menina e menino.
            Mas amarelo era uma mulher que se casava com o verde.
            Neguei esse fato estampado entre minhas pernas até não conseguir mais escondê-lo. Quando os seios cresceram, a distância entre eu e eles aumentou: foi quando percebi que nunca iria alcança-los. Do buraco da falta, saiu sangue: foi quando percebi que algo em mim iria morrer aos poucos, sem fazer alarde.
Geralmente os homens acham que machismo é estupro, feminicídio e abusos que deixam manchas roxas sobre nossas peles. Mas é mais difícil ver as coisas que machucam nossas almas – muitas coisas que nós muitas vezes não queremos fazer, mas as fazemos mesmo assim, sem nem pensar, sem nem perceber. Nós sentimos cada um desses machucados, mas a gente sente tanto, há tanto tempo, que nem sentimos mais. Eu sou uma fratura exposta, mas eles não querem ver. Aliás, quando eu digo “eles”, todos vocês estão incluídos; quando eu digo “eu”, todas nós afirmamos com a cabeça.

II – MEIO

            Meu filme preferido da Disney sempre foi “Peter Pan” – aquele em que a Wendy dá seu beijo para o menino que não quer crescer; aquele em que a Wendy aprende a ser mãe quando dá seu primeiro beijo; aquele em que a Wendy aprende a ser mãe antes de aprender a ser gente.
            Quando dei, parecia que não cabia: que nada ali me cabia; que em nada ali eu caberia. Uma relação entre pênis e vagina não deixa nenhuma outra saída além de encarar as diferenças postas sobre a cama. “Você me machucou”, eu disse olhando a mancha sobre o lençol. Ele chorou: “Primeiro aprende-se a ser homem, depois, ser humano”. Ele havia acabado de aprender a chorar.
Quando amei, tive que segurar o rosto dele e implorar que nem tudo fosse sexo. A liberdade sexual só lhe fazia sentido quando minha resposta era “sim”. Eu não queria que tivessem medo do meu corpo, que segurassem sem segurança meu sexo frágil com o dedo indicador. Também não queria que me comessem pelos olhos sem permissão. Perto dele, por uma diferença biológica, eu era estatística e ele machista. As cócegas eram feitas pelas mesmas mãos que seguravam meus pulsos, apertando. Eu não podia confiar nele, embora o amasse. Chorei. Havia esquecido como chorar. Não havia nada que pudéssemos fazer para estancar nossas lágrimas.

III - FIM

Sempre será sobre vocês, mesmo que não façam nada do que foi descrito, mesmo que nem entendam do que eu estou falando. Na festa de ontem, cada vez que a porta abria, descia um calafrio pela minha espinha, de desejo e medo de que eles entrassem por ali. Esse tipo de amor, não sei, é complicado, contraditório... muitas vezes eu não faço ideia do que estou falando. Mas é injusto que me peçam coerência nessa explicação, se vocês também não a têm e não se pegam preocupados em serem estuprados pelo seu grande amor.
Estou longe de ser livre, forte ou qualquer um desses adjetivos que botam antes do termo “mulher” para designá-la como diferente da maioria. Fui pra casa como todas as outras, dormir de olhos abertos mesmo com alguém me abraçando - principalmente porque alguém estava me abraçando. Nós vivemos com medo do outro. Eu acredito no amor e digo que ele é um sentimento que ninguém nunca sentiu, pois não é possível senti-lo: não há amor em uma sociedade desigual.
Simone disse: “é mais fácil acusar um sexo do que desculpar o outro”. Será que eu desculpo vocês? Primeiro, tenho que saber se vocês aceitam as minhas acusações, mesmo elas sendo a parte mais fácil de ser feita, ou se olham para o outro lado e insistem em não ver: a fratura está exposta. Eu tô metendo o dedo na ferida - igual vocês meteram em nós – e tô gritando para ninguém poder dizer que não escutou. Pois todos os dias eu lhes desculpo: quando lhes vejo, converso, beijo e toco; quando fazem machismos por querer, sem querer e quando se recusam a conversar sobre isso. Quando vocês não percebem que isso também é sobre vocês, não só como agentes da violência, mas como violentados. Eu os desculpo quando não choram, quando não sentem, quando não entendem. Eu os desculpo todas as vezes que são homens e, então, me obrigam a ser mulher, há 20 anos. Agora, quero saber se vocês se desculpam também, porque, para isso, tem-se que sentir a culpa. E, você vá me desculpar, mas eu não vou mais pedir desculpas.


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