quinta-feira, 26 de março de 2020

CORRESPONDÊNCIA II


            Olá querido,
Faz cinco meses que nos vimos pela última vez. Ontem não te vi porque recebi uma surra de palavras que me deixou sem forças para sair da cama. Percebi que isso é uma atitude minha que tenho com frequência: me machuco com palavras cruéis, me assusto com a concretude das paredes, encolhida num canto, mal-amada, para impedir que eu me machuque de verdade com coisas reais. Eu tive muito medo do que eu ia sentir quando você abrisse a porta. E mais medo ainda do que sentiria quando eu chegasse em casa e você estivesse em um avião.
            Agora te escrevo, pois estou cansada desse mar agitado na minha barriga, essa coisa mal digerida. “Amar é marés”, tento me convencer, enjoada na proa do meu próprio navio. Ouço ao fundo a sua voz: “você me machucou e vai ter que resolver isso se quiser continuar perto de mim”. Me sinto longe, querido. Me sinto cruel. Me sinto triste. O fato de querer estar com você e não estar me deixa triste e é uma tristeza muito simples. O complicado é tentar não senti-la.
            Eu nunca te disse que não queria que você fosse embora, pois sabia que era um desejo irreal e impotente.    Eu quis te deixar ir sem amarras, tentando incorporar o nome daquele filme que chorei só de ver a capa na locadora, na noite em que tentávamos escolher uma distração para o fim. Saímos sem alugar nada, mas eu levei comigo: “viajo porque preciso, volto porque te amo”. Você viaja porque precisa e volta porque me ama. Eu não te vejo porque sou covarde e me escondo na minha própria cama.
            Houve uma dureza quando eu disse que te amo; você temia que isso sumisse como minha coragem sumiu. Deveria ter te dito sobre meus medos, meus desejos. Sobre a vulnerabilidade de amar só. No telefone, você é a escuridão quilométrica por trás dos meus olhos e eu não posso te tocar. Pois, no nosso quarto, a falta de palavras eram abraços, olhares, beijos e há tantas coisas que não podem ser ditas por palavras. Mas, agora, a ausência de palavras é só uma agoniante e fria espera. Tudo em nós está em intervalo e as conversas saturadas de palavras não me deixam sentir a falta. Ela inflama, lateja, tem o pus do que eu não disse. Eu não queria que você tivesse ido embora.
Na noite em que nos conhecemos, eu te falei que achava que amar era leve. Pois, agora, eu discordo de mim mesma, porque amar é delicado, precioso, duradouro e inexpressível em sua magnitude. Tem-se que confiar; amar sem régua; dar sem exigir nada em troca, pois sabe que o outro vai dar porque quer. O amor talvez seja o sentimento mais pesado que existe, por isso que precisa haver duas pessoas para senti-lo: para compartilhar; para não ser insustentável. Não acho mais que dê para amar sem doer - mas dá pra doer sem morrer ou matar.
            Naquela noite eu falei também que a vida era muito longa. E eu juro que rasgaria o espaço-tempo com as unhas para te ter pra sempre ao meu lado. Mas o “pra sempre” é uma coisa esquisita: queremos no futuro o que temos nos passado. Quando me vejo, você sempre está aqui pois nada pode me arrancar meu passado, nem palavras cruéis, nem eu mesma. Te digo que não fui embora e isso é o máximo que posso fazer por você. Agora, te resta acreditar.

POEMA QUE O TÍTULO VEM NO FIM

Dormir na turbina do avião, a cabeça já no destino.
O corpo, incapaz de atravessar o mundo em um segundo.
Cada quilômetro é injusto, mesmo com o carro correndo
- querer correr e encontrar na esquina.
Dedos de unhas roídas empurram a porta do metrô,
mas não conseguem apertar a campainha.
As mudanças se tornam radicais demais.
Pegar dois pratos pondo a mesa para um.
Sentir o magnetismo de um abraço impossível.
Querer ter a chance de se entediar
das mesmas piadas, mesmos quadros,
mesmo caminho, mesmo sofá.
Os dias terminam sem começar
num lugar onde nada habita.
O coração duro, cheio de palavras perigosas.
O lado da cama, vazio, reclama
e você, por toda a parte.

SAUDADE

quarta-feira, 11 de março de 2020

ABRAÇO

Onde está a saudade
nesse vazio que se aproxima?
Não refutaria, sim, ainda te quero.
Sorrisos amarelos, firmes:
todos os crimes devem ficar para trás.

Onde está a saudade?
Nesses segundos desnecessários, muitos?
Ofego ar árido ao pé de teu ouvido,
as pernas tremem, as pálpebras. Bem...
é bom te ver também.

Onde? Procuro
investigo, insistente, as rugas
os inchaços. O vazio, pergunto,
é excesso ou falta
de noites, de vinho, de água?

Há saudade? A despedida
é um abraço, saída fácil
pras bocas viciadas em se rever.
Mas a mão segura a nuca -
aquele hábito difícil de perder.

As lágrimas caem, são poucas
embora sofridas.
Onde há saudade
fica.