terça-feira, 11 de dezembro de 2018

"O ETERNO ME ASSUSTA, MAS O EFÊMERO ME APAVORA"

Você parecia perdido - ou talvez eu queria que estivesse, porque eu estou, e seria bom se ainda tivéssemos algo em comum. Por isso eu perguntei se estava tudo bem, porque eu sabia que não estava, mas não soube o que fazer quando você se escondeu atrás das suas pupilas, onde eu nunca consigo te achar. Às vezes mostramos mais do que pretendíamos em apenas um olhar, mas não percebemos porque os outros nunca estão muito a fim de ver.
Você perguntou como eu sabia e eu respondi: “sabendo”. Então respondeu que, se sabe-se por saber, então não se sabe de nada. Muito provavelmente você está certo, não sei direito, porque você sempre jogou com as palavras pra não ter que dizer. Mas não acredito que isso seja igual a estar tudo bem. Quando a luz era pouca e as pessoas passavam por nós sem perceber o fim, parecia que sim; agora, com a luz da cozinha piscando sobre o meu caderno, isso me angustia.
Gostaria que você pudesse voltar e me convencer de novo.
Você tem toda a culpa em suas mãos, para colocá-la onde quiser; vai colocar em mim, sem perceber que isso nunca te absolverá de nada. O amor continua presente mesmo após o abandono. Ela morreu e eu continuo a amá-la: porque com o nosso fim seria diferente?
- Isso morreu e está me matando. 
 Você não consegue se por no meu lugar, pois está se afundando nas verdades precisamente mentirosas que conta a si mesmo. Não percebe que transformei seu peito em um vazio horrendo porque alguém teria que fazer isso e agora ouço suas acusações como se fossem agulhas de acupuntura entrando em meu ouvido. E não adianta quantas vezes eu repita que quero te ver, tudo o que você consegue ver é a minha partida.
Se eu tivesse mais de uma vida, com certeza dedicaria uma inteira a você.
As coisas ruins sempre vão machucar e as boas sempre estarão carregadas de uma paz morna. Como algo morno queima meu esôfago tão intensamente? Às vezes é difícil de lembrar como era quando você não era apenas uma memória. Nós não cabemos em uma foto - nem em duas, nem em dez. Não há foto de você chorando no meio da rua; dos dias em que as horas não passavam; da dificuldade em permanecer junto. Não há nenhuma foto da saudade que tenho de ti.
Às vezes é difícil de lembrar como era sua unha arranhando delicadamente minha pele ou sua boca falando coisas horríveis - cada gesto carregava milhões de intenções não anunciadas, não realizadas; cada gesto desbravava o Novo Mundo que existia entre nós dois, cortava as flores pelas raízes. Há folhas de samambaias por todo o chão do meu apartamento. Nosso passado sempre dormiria junto de nós, precisaríamos de uma cama cada vez maior. Às vezes é difícil me explicar porque eu parti, mas de manhã tudo fica claro: eu não cabia mais naquele quarto.
Quando escolhi estar com você, não fazia ideia do vazio que a saudade deixa em nós. Às vezes me pergunto se escolheria ficar se soubesse. Vou te perder cada dia um pouco mais, durante toda a minha vida, mesmo quando não te conhecia. Todos os dias, quando eu acordar, terei escolhido ficar e terei escolhido partir.
Te amei porque você era real. Isso é o suficiente?

segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

VENTO

Me perguntou como se não soubesses.
E como é que eu vou falar com você?
Tens um nome que parece um sussurro.
Às vezes o sensível expressa,
mas na falha dele, temos a boca.
Assobiei.

Desde quando somos o que somos?
Podemos mudar, mas sempre seremos nós -
nós nas pontas dos dedos.
Desde quando te amar fez parte de mim?
Desde quando mudar fez parte de mim?
Suspirei.

Como é perder um amor aos quinze anos?
Como é achar que alguém te pertence
indubitavelmente?
Tudo o que consigo achar é que
quanto mais o tempo passa
mais próximos estamos do fim.
Ah, se eu tivesse um desejo
que cresce da terra num dente-de-leão.
Assoprei.

Preciso dizer, mas cá estou:
insuportavelmente lúcida.
- Lúcia, eu...
reticências.

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

ROMANCE DE 200 PÁGINAS E 20 ANOS

Eu perguntei o porquê
e ele falou do começo ao fim
- se Deus fosse me dizer alguma coisa
seria com a tua voz e,
apesar de eu necessitar de respostas,
sei que pode sempre ser silêncio -,
mas não adianta:
há coisas que só fazem sentido depois do fim.
Seria necessário uma vida inteira para compreendê-lo.

"Por que os livros se chamam romance
mesmo quando não tratam do amor?
Amor é igualdade, não semelhança;
é uma porta, não um espelho;
é ver, por um instante, algo além de si."
Olhar nos teus olhos pareceu algo muito íntimo
para ser feito na frente de nós mesmos.

O pé pisa o chão o dia inteiro
mas quando chega à noite, sente as cócegas.
À noite: um tempo indefinidamente inesgotável.
De dia, quando não te conhecia, me sentia sozinha,
mas à noite, quando vais embora, é pior ainda.
À noite: quando tudo está por acontecer.
Não vou pedir que faças nada
além de ser.

terça-feira, 13 de novembro de 2018

ROTAÇÃO - DIÁLOGO

– Você já parou pra pensar que, nesse exato momento, o sol está se pondo e nascendo ao mesmo tempo em algum lugar do mundo?
– Que horas são?
– Duas e trinta e quatro.
– Nunca pensei nisso, mas é verdade. Onde você acha que está nascendo?
– Pelo horário, em alguma ilhazinha do Pacífico. Ou talvez no Vietnã... nunca aprendi direito essas coisas de fuso horário.
– E se pondo?
– Acho que no oeste dos Estados Unidos.
– Nossa... O mundo parece muito grande da sua janela. Principalmente pelas coisas que não estamos vendo.
            – Sabe no que eu estou pensando?
            – Calma, eu estou sentindo tudo.
            
            – Você dormiu?
– Não.
– Posso falar?
            – Agora pode.
          – Tava pensando que o Vietnã é meio socialista e que mesmo assim eu tenho que pagar uma passagem de avião para chegar lá. Por que o mundo não simplesmente se divide metade capitalista e metade comunista? Aí as pessoas decidem se querem morar em um ou em outro.
         – Acho que não é tão simples assim, o ser humano não consegue entrar em um acordo tão facilmente.
            – É, eu sei. Mas não é justo que esse sistema decida quem tem o direito a ter direitos. Quem te o direito de viver. Eu li ontem essa frase: “será que existe vida antes da morte?”.
            
            – O que você acha que é a morte?
            – Nada.
            – Uma vez eu ouvi dizer que era um silêncio mineral... Mas, e se for razão?
            – Então será razão em um silêncio mineral.
  Espera: acho que consigo ouvir.

– Será que já nasceu o sol no Japão?
– Por que?
– Porque acho que lá tem uma menina falando a mesma coisa que você está me dizendo para a amiga dela. E elas estão pensando em nós.

terça-feira, 6 de novembro de 2018

QUE FAZER?

Foi inocência nossa achar
que eles desistiriam agora
ou em qualquer momento.

i n o c ê n c i a : um gosto amargo na boca.

Nosso fim não pode ser
explodir em ódio e rancor
como bombas de repressão.

d i s p e r s ã o : uma panela de pressão de desesperança.

Temos paus e pedras nas mãos
mas eles têm nossas vidas, então
o que faremos?
P o e s i a,
mas não só isso.

Deixar-se afetar pelas coisas belas,
não se trancar em sua raiva,
retirar o pino:
agora, estamos vivos
pelo acaso ou pelo destino
e devemos deixar nossos espíritos
l e v e s
pois são eles que vão para o céu na morte
e, a partir de hoje,
morreremos muito todo dia.

É por isso que faremos poesia:
porque eles não aguentam,
porque eles não entendem
como ainda podemos sorrir
depois de foderem tanto a gente.
É para isso que faremos poesia:
para nos trancarmos nesse mundo,
para ver as flores que nascem na calçada -
como a que Carlos viu, no meio da Guerra.
"É feia. Mas é uma flor".

Não pise em nossas flores.

quarta-feira, 17 de outubro de 2018

EROS E CIVILIZAÇÃO

Acordei com a boca seca:
de tanto ranger os dentes
eles se transformaram em areia.
Me senti sozinha só com o sol na sala.
Com centralismo estomacal,
sumi da cabeça aos pés.

Minha dor é política:
a falta de prazer é a ferida
pois tudo o que toco vira ouro
ao invés de vida.

Eu me doo até ficar doída
e me chamam de doida e deprimida.
Carlos Drummond já dizia:
"doação ilimitada a uma completa ingratidão".
Às vezes falta um retorno:
o eterno retorno.
Como viverei num mundo onde não posso existir?

"Eu não posso resolver o mundo"
ouvi detrás do divã.
- Então talvez não resolveremos nada. -

suspirei.

- Às vezes falta um carinho.


segunda-feira, 8 de outubro de 2018

THANATOS E EROS

Olhei através da palma de minha mão
a pilha de vermelhos.
Quando uma cor passa a ser perigosa?
Ele tentou me convencer
de que a Terra não era o universo,
sem um centro e lados.
Não ouvi direito
pois estávamos em rotação universal:
afundados até as orelhas na desesperança da repetição histórica.
Respiramos fundo.
Por favor, respiremos fundo,
sentindo vividamente nossos pulmões
- é o primeiro passo para continuarmos
lutando.

Já não é mais uma rasa política:
é o amor contra a morte.
A partir de hoje, não faça mais sexo,
não pregue a inclusão,
não peça igualdade,
não exija direitos:
transformemos tudo isso em amor.
Amor,
um resto em tempos tão sombrios.

Eu tô cansada de morrer de medo.

segunda-feira, 24 de setembro de 2018

MANHAÃ

O sol nasceu entre os fios de seu cabelo.
Me apaixonei pelos seus pensamentos
falados entre a sinfonia da panela de pressão
e da chaleira.
Te pus de cabeça para baixo
porque assim o sangue corre todo para os olhos
e se diz as coisas sem pensar:
"onde está o norte?" -
apontou para o meu umbigo.

As mãos e os pés tem o mesmo número de dedos
e sem os mindinhos seriamos desequilibrados
pois não poderíamos jurar sem descumprir.
Nossas mãos não tem o mesmo tamanho,
seria pretensioso se tivessem:
não há igualdade entre nós.
Mas há como nos olharmos nos olhos,
cheios de sangue,
e combinarmos:
se não preencher,
transbordemos.

No fim, a chaleira avisou:
"café para um".
Chutei cabelos cor de carmim pelo chão.
O sol nasceu do parapeito da janela
e o desjejum foi ver a paisagem.

terça-feira, 11 de setembro de 2018

CÉREBROCORAÇÃO

Cheguei na bancada do pronto-socorro com o coração na mão. A atendente me olhou assustada. “Você acha que alguém aqui consegue me ajudar?”, perguntei. Ela gaguejou qualquer coisa que não consegui entender e chamou por um nome, que atravessou a porta sem maçanetas e, surpreendentemente, se surpreendeu. Sempre achei que médicos obtinham a ingaia ciência, que Carlos Drummond falou, enquanto cursavam a faculdade. Aquela: a que interrompe a surpresa da janela.
Me levaram de cadeira de rodas até um quarto branco, todo branco, com cadeira, janela, maca e paredes brancas, além de coisas metalizadas e esterilizadas. Perguntei se podiam me dar um anestésico qualquer, para que pudessem resolver o que eles fariam com tudo aquilo em paz. Disseram que não, que antes queriam uma explicação de como aquilo tinha acontecido. E que tudo começasse do começo.
Bom, o começo foi um sufoco na garganta, o que levou meu médico a acreditar que era  refluxo ou algum problema na tireoide. Depois foi falta de ar, que ele atribuíu à poluição daqueles meses sem chuva. Então, uma dor no fim do estômago, gastrite; prisão de ventre, muita fibra; dores musculares, falta de exercício; insônia, estresse; dor nos rins – nem sei onde ficam os rins, mas eles doíam -, muito sódio; cegueira instantânea, diabetes. “Mas não tenho diabetes, por isso a cegueira passou”, dei de ombros, olhando para os médicos que acumulavam na sala, tentando ouvir meu relato.
“Depois veio uma dor imensa, tão imensa que eu não sabia onde era”, continuei. “E era profunda, tão profunda que nenhum raio-x conseguiu acha-la. Passei vinte e três horas aqui, nesse hospital. Me mandaram embora depois de desistirem de procurar. Também me mandaram fazer terapia, que talvez fosse psicossomático. Hoje foi a primeira sessão”. Um médico começou a medir minha pressão, enquanto o outro tirava de minhas mão e posicionava, em uma bandeja de metal fria,  o meu coração, que saia pela boca.
– Há quanto tempo está assim? – perguntou alguém sem crachá e, portanto, sem nome, mas que me olhava nos olhos. Era difícil se concentrar em qualquer coisa sem ser o liquido viscoso que saia do órgão pulsante, escorrendo pela bancada e pingando no chão.
– Há mais ou menos uma hora. – respondi. – Antônio, meu terapeuta, me disse pra colocar tudo pra fora. Isso era tudo o que tinha. A cabeça era dura demais para abrir.
Todos da sala me olharam, com pena.
            – Mas nada mais dói. – continuei. – Até a sensação inicial na garganta, com as artérias passando por aqui (apontei para a traqueia), não incomoda mais. Não queria causar nenhuma dor de cabeça a vocês, só vim porque achei que não podia ficar desse jeito.
            A pessoa do olhar balançou negativamente a cabeça, enquanto outros balançavam afirmativamente. Olhei finalmente para o meu coração.
            – Não acho que temos materiais, técnicas ou conhecimento o suficiente para colocar tudo isso no lugar. – disse um dos médicos mais velho presente na sala, pausadamente, sendo perceptível o cuidado que tomava em escolher cada palavra. Suspirei. – O que acha sobre isso?
            – Achei que seria de um vermelho mais vivo.

segunda-feira, 20 de agosto de 2018

SUPERESTRUTURA

Você me cumprimentou com trejeitos de quem vê um fantasma. Respondi a todas as tuas perguntas com a voz fanha, tentando imitar o timbre que ressoa nas narinas depois que se acaba de cheirar pó. Você não entendeu a referência, pois nunca entendeu nada do que eu digo. Meus olhos não focaram, não me lembro de nenhum assunto que permeou nosso bate-papo além de que você citou Ana Cristina César, dizendo que minha escrita era parecida com a dela.
Lá também estava uma menina de cabelos arrepiados e voz grossa, achei ela chata mesmo antes de você dizer que era sua namorada. O ciúme é uma coisa doida, principalmente se tem bases sólidas – eu sei que, depois disso, você vai se ramificar e dizer que eu sou histérica, irracional e impossível; eu vou ouvir tudo isso como elogios. Você nunca entendeu minha incapacidade de escrever em terceira pessoa e se incomodava com o fato de eu escrever à tantos você's. Você nunca entendeu que meus personagens não existem, mesmo depois de virar um, mesmo depois de ler a carta de Ana, falando sobre Gil.
Aliás, Ana é ríspida e ardida, o que me deu dor de garganta e vontade de te bater com as teclas da minha máquina de escrever. Digitá-lo por inteiro, com a máxima força, para furar o papel nos pontos finais. Depois disso, você se achou livre o suficiente para tocar meu joelho duas vezes e eu te odiei muito, do fundo dos meus ossos – é de lá que vem toda a minha dor. Pois, sempre que discutíamos sobre existencialismo, você nunca entendia o conceito de “humanidade”, nunca quis me libertar também. Nunca entendeu que, enquanto eu fosse sua, o toque seria agressão, não carinho.
No fim das contas, lá estava eu, ardida e sem voz. Na década de oitenta, o cinema era o único lugar que dava pra beijar alguém, mas a sexualidade sempre teve um quê de sujo, de podre. Eu quis gritar para todo mundo que seu queixo tava sujo, quis gritar para todo mundo que suas marcas ainda estavam em mim. Olhando para você, vi todas as tuas faltas e faltava qualquer vestígio de mim. Olhando pra você, com olhos trementes, você sorriu. Eu quis te beijar até você morrer sufocado. Pensei: "ah não, ele vai virar mais um texto e eu serei a vilã, de novo, mesmo através de minhas mãos". Cá estamos: você continua sem entender nada; eu continuo sem conseguir explicar.

segunda-feira, 13 de agosto de 2018

LEITURAS

“Quem não se apaixonou
não vai entender esse livro” ele disse,
grifando as passagens mais importantes
com lágrimas literais.
Em um não-ser insuportavelmente justo
e necessário,
descobri novas cores. 
Em um presente passado no futuro
guardei minha solidão para ti,
que a recusou educadamente.
O barco afundou sem ninguém dentro:
nenhum sobrevivente.
          - Eu vou se você vier
mas já havia ido faz tempo.
Meu coração circulava
e, traçando uma tangente,
sentimentos mesclados
me disseram:
nós somos tudo o que eu nunca fui.

terça-feira, 31 de julho de 2018

FACA DE DOIS LEGUMES

Andei cheia de abobrinhas
na boca, na mente e na mala
porque você não quis ouví-las,
nem aguenta-las ou frita-las.
Agora o mundo ia desabar
e o céu está nitidamente azul.

Fins acabam
comigo: demoro três dias
pra terminar um livro lido
e, no quarto,
deixo ele de lado,
pois não aguento mais olhar na sua
cara
       ou capa.

Personalização:
as mãos
andam lado a lado
e não se dão.

Delicia-te do corpo feito carne
e te descasco feito cebola:
a cada camada um novo sabor.
Ardor árduo.
Chorei água corrente
e temperei o prato da outra.

terça-feira, 24 de julho de 2018

AMAR A PRIORI

Foram três dias imensos
pois eu acordava antes de acordar
e dormia depois de dormir.
O tempo passa mais rápido
em universos paralelos.
Parece que tudo é infinito
quando se coloca a cabeça no lugar
e não a esquece no balcão
ou na casa de outra pessoa.
Eu botei meu ouvido em teu peito
ouvindo todas as palavras que saiam dali,
igual se ouve o mar que sai da concha:
a maior parte delas não fazia sentido.
Me acostumei a te entender
sem ler a entrelinha que teus lábios formam
quando se fecham para beijar
ou mastigar
pensamentos não formulados.
Você já tirou toda a minha roupa
e, agora, me deixa nua
antes de qualquer coisa ser feita.

quinta-feira, 14 de junho de 2018

INSUSTENTÁVEL

“Os olhos, como se diz,
são a janela da alma”

   Jantávamos olhares, e o seu me barrava na íris. Enquanto falávamos sobre tudo, você bebia todo o meu mar e eu morria afogada na praia. Havia alguma sutileza, algo que havia se tornado duro nos seus olhos. Antes, o preto de sua pupila parecia a imensidão desconhecida dentro de ti; naquele momento, parecia um muro que me deixava do lado de fora. Latidos de cães que protegem um terreno baldio, que afastam quem não é bem vindo. Eu te olhava, olhava, não entrava. E você não piscou, nem uma vez.
   Não aguentei e desviei pra algum lugar, não sei, meu copo. Meio cheia meio vazia, minha cabeça já estava em outro lugar longe de suas palavras, e minhas pernas balançavam como se quisessem ir rapidamente pra lá. Quando te vi de soslaio, você ainda me olhava do mesmo jeito, e eu comecei a assisti-lo, como um filme. Como faço em um filme, parei de prestar atenção alguns minutos depois.
   Me lembrei de um moço, com quem estudei no colégio. Quando conversamos pela primeira vez, ele me confessou que me observava de longe há bastante tempo, mas que nunca teve coragem de vir falar comigo porque eu tinha olhos duros. Eu sabia que o pior que poderia sair dos meus olhos não era nada mais do que medos, inseguranças e lágrimas. Me espantei com aquele depoimento: não havia nada de duro para se esbarrar quando tentava-se entrar em mim. Olhei pra você mais uma vez e me perguntei quantos medos havia nas palavras que você proferia. Suspirei e você parou de falar.
   - No que está pensando?

   - Em todas as coisas não ditas.

sexta-feira, 8 de junho de 2018

VEM

O dia é cheio quando apareces
e pintas todas as paredes
com a cor de tuas mãos.
Tudo é tu
do começo ao fim.
Imagina se o tempo fosse retorno:
seria interminável
e eu seria infeliz.
O agora perderia o sentido,
assim como eu, quando cruzo contigo.
Parece que vamos tropeçar e virar adultos,
mas tudo cicatriza
até a maior dor do mundo:
joelho ralado.
Eu flertei o tempo todo, inclusive com o tempo
esperando que ele me desse mais uma chance,
e você esperou
que eu fosse absurda

de novo.