terça-feira, 23 de abril de 2019

TALVEZ AS COBRAS SEJAM CONSTANTES CICATRIZES

Troquei de pele
mas conservo a antiga por cima dos os móveis -
me espero voltar de viagem.
De um corpo dormente que dormiu por cima de si
sai uma voz de outono que insiste em dizer que é minha
em conversas recheadas de piscadas demoradas:
- Como estou? Estou indo.
A vida tem passado sem compromisso.
(monotonia de turbina de avião)

          Nasci na primavera, tu sabes:
                         fui feita do renascer.
          Então me abraças, com todas as tuas flores,
          conferes se sem chuva um jardim vive
          - mas eu sou só água, ar e fogo:
          de mim, nada floresce.


Tu já me disse: "se me escreves mil poemas
amas poesia, não a mim."
Esse é mais um poema seu,
pois há muito pararam de me pertencer
(talvez seja o décimo, enésimo).
                                    Enézio. . .eu não sei.
Você desistiu de nós como quem larga um livro pela metade
e era só no fim que tudo ia se resolver:
naquele capítulo que eu nunca tive força para acabar;
naquele poema que eu evitei contracenar
para não ter que escrever.

Achei que éramos os amantes que se separaram sem querer
mas apenas apostamos uma corrida corajosa
para um encontro totalmente covarde.
Essas letras serão queimadas no inverno
e você verá: já é quase verão.
         Arranco a pele da ponta do dedo
         e isso se alastra pelos meus nervos
         como uma avalanche
         - de repente estou crua
         na escuridão de um abraço.
Nem você afeta mais meus afetos.
Do nosso amor, apenas um pedido de desculpas. 

domingo, 14 de abril de 2019

O FILHO DE MIM, HOMENS

Conta-me o passado como se fosse algo irreparável
me entregando um furacão de coisas regurgitadas
que deixei para trás e aqui dentro:
- Essa é você.
Fui sua heroína
até essa palavra se tornar uma droga
- não queria ter feito nada do que não fiz.
Mas foi você quem quebrou tudo
apenas sentando para ver televisão
e me olhou como se seus olhos fossem saltar
e fazer uma ciranda,

mas tudo está sempre tão fixo em ti
parece que a Terra terá que desabar
para perceber que seus ossos
são mais frágeis que um orgulho;
que seu coração não digere esses silêncios.

Lembra-se de puxar meu ouvido até o bigode?
Foi só para me lembrar
que seus dedos esquerdos
eram mais fortes que meus direitos.
Lembra-se dos gritos em cima de choros?
Era só para me lembrar
que não havia o que ser feito -
esse mundo não é para nenhum de nós.
Você pergunta por vestidos bonitos
em noites de cristal e lustres de óperas
mas eles foram só para te lembrar
que eu não sou um homem;
eu nunca vou ser.

Se um dia ficarmos sozinhos e inversos
perceberemos que nossa companhia agrada.
Mas, depois das batidas, me esperava no batente;
depois dos palavrões, caia pelo parapeito
e ainda é o seu peito que engole cada palavra do que falo.
Eu não consigo me comunicar com quem não sente
- ou quem esquece de sentir -
mas repito em respeito, receosa
de que nem em seu enterro haverá um silêncio tão mortal.
De nada adianta:
eu não consigo me acostumar com quem vai embora.

quinta-feira, 4 de abril de 2019

CONSTELAÇÕES

Sabia que era a última estrela
e estava coberta até o queixo de não-saberes.
Estar com ele era como se afogar num espelho d'água:
encarar um fato sobre mim que foge das palavras;
algo que está bem a minha frente
enquanto tomo decisões erradas.
A verdade é que prolongamos coincidências -
fizemos com as próprias mãos o destino
para não contrariar a maldita sorte.
Mas minhas exigências vertiginosas
mostravam que aquilo era um delírio
específico demais
para ser algo além de passagem.
O céu me lembrava que sempre haverá mais.

"Eu queria estar com você agora
porque os quereres estão translúcidos
e você escreve poemas muito melhores."
E eu queria ter heterônimos
para que sempre soubessem
que eu nunca escrevo a verdade.
A verdade é que eu não leria meus poemas.
Mas escrever é dedicar os dedos a marcenaria:
talha-los em palavras.
Essas caem entre nós como blocos de mármore
e não esculpimos nada, apenas olho-as como posso:
espantada com sua delicadeza bruta;
gigante.

"O amor da minha vida sempre será o próximo
e terei esperado minha vida inteira por ele",
disse num dia de cotidiano aparente
e suas pupilas nunca mais foram do mesmo tamanho.
Volto para casa olhando os dedos machucados
de toda gente dessa cidade
e me pergunto como eles penteiam os pentelhos;
qual é o cafuné que eles fazem;
como eles secam uma lágrima;
como eles apagam uma estrela
- ele apagou com um susto:
"Um quarto da vida já foi.
Você tá esperando o quê?"