sábado, 12 de janeiro de 2019

LÂMINAS

Se o lábio é vermelho como uma ferida
tudo que sai feriu, fere ou ferirá.
Não estou em carne viva
- estou carne e viva.
Não fui eu que inventei essa linguagem
que se permite ser tão sofrida.

Tive medo de abrir a boca e minhas dores falarem por mim.
Não adiantou tapá-la:
o grito ecoa aqui dentro.

(tenha respeito ao entrar e ver minhas entranhas. não é bonito, eu sei: está escuro, desorganizado e até um pouco fedido. faz tempo que não venho aqui. por favor, não repare a bagunça. não se assuste)

"Está tudo fechado, que horrível! Abra um pouco sua cabeça",
disseste abrindo as cortinas,
batendo os tapetes,
arrastando as cadeiras;
encanou um vento, levantou poeira
e eu não vi mais nada, míope de desespero.
O cômodo continuou sem nenhuma luz.
"Sabes o que mais gosto do escuro?
Não há cor, forma ou vazio
- tudo se preenche."

(se amas algo que sou, saibas que há momentos de completo nada - momentos em que mais preciso de amor e que menos serei amável. se não consegues ver nada que não goste em mim, então não me viste realmente. deves amar o jeito de ser pois isso não muda nem em minhas mortes: tudo é sempre demais, mas nunca o suficiente)

OS BARULHOS
AS LUZES
OS MOVIMENTOS
AS PALAVRAS
: era tudo muito brutal.
tu: EU TE AMO.
eu: cuidado.

Carreguei esse fato que é o amor,
pesado e imaterial.
"E eu sei lá o que fazer com isso?"
Tive que apagar tudo e todo o resto
para que, no silêncio que restasse,
eu o engolisse como um remédio:
em seco.

Desceu pela garganta,
fermentou no estômago,
serpenteou as curvas do intestino,
beijou cada lâmina que achou pelo caminho
(mas eram só palavras, não mudavam nada)
     - Não beije minhas cicatrizes!
     - Não ame minhas dores!

Acariciei meus mesmos músculos, já tão maltratados.

Nenhum comentário:

Postar um comentário