terça-feira, 19 de setembro de 2017

ENCÉFALO ALTAMENTE DESENVOLVIDO

Ela não sabe que vai morrer,
por isso dorme, come, anda pela casa o tempo todo
e só.
Se muito, quando um bicho da luz
entra pela janela numa noite de verão,
ela não hesita em dar-lhe um safanão
sem nem sequer imaginar
que por aí há coisas
que podem arranha-la
como ela faz com aqueles pobres insetos.

A luminária é seu sol,
o teto é seu limite
e o corredor apresenta tantas possibilidades
que ela se agacha,
encara
e não vai.
Quando tento tirar seus pés do chão
virar seu mundo de cabeça para baixo,
ela grita num protesto arrastado,
pedindo um pouco de racionalidade em meus atos.

Ela não sabe que tudo isso acaba um dia,
por isso ronrona ao simples toque,
fecha o olho ao ver qualquer sorriso,
corre atrás de um fio
longo, vermelho e felpudo,
arranha meu braço num pedido de carinho,
sem nem sequer imaginar
que dentro de mim há coisas
que podem arranha-la
como ela faz com o meu braço.

Já me surpreendi ao me ver brava,
ressentida, confusa e magoada
tentando dialogar humanamente
e ela só não dava risada
porque nunca se rebaixaria
ao meu nível:
pensar, pensar, pensar
e dar de cara com respostas infinitas
para perguntas mais longas ainda.

segunda-feira, 4 de setembro de 2017

22:35

   O quarto me sufocava, então acendi as luzes e  abri a janela. O barulho daquela noite, já tão tarde, me lembrava que o mundo girava muito mais do que minha própria cabeça. Sentei-me na beirada da cama, fechei os olhos e me concentrei no ruído. Latidos de cachorro. O ônibus sanfonado (que o motos faz mais esforço). O ruído das esferas cósmicas em atrito. Um grito.
   Abri os olhos em sobressalto, fui até a janela. Não havia nada, sem sinal de um dono para aquele susto que eu havia levado, apenas a silhueta de alguns prédios. Me sentei novamente na cama, agora olhando para a paisagem, atenta. A adrenalina de não saber o que acontecia corria de um lado pro outro, sem saber o que fazer. Lá fora, tudo em inércia: o que se movimentava continuava se movimentando, o que parado estava, assim continuou. Eu, estática. Mais um grito, feminino, estilhaçado, como numa briga surda com muitos sentimentos em ebulição. Acendi mais uma luz mais forte, a do teto, e me direcionei novamente à janela. 
   Agora havia uma sombra refletida na parede do prédio ao lado, logo abaixo de minha janela. Talvez fosse algum desentendimento com os pais, o grito foi o ponto final, e agora ela se sentava à beira da janela tentando respirar, tentando ouvir outros barulhos sem ser o seu, tentando ver outros mundos, assim como eu. Mal ela sabia que eu via o mundo dela. Cabelos curtos caiam desgrenhados no rosto, ombros também caídos. Conseguia até ver os olhos vermelhos, a boca escancarada, ouvir a respiração descompassada. Suspirei junto com ela. "Tem alguém aí?", perguntei, mas não houve, só o ônibus indo embora. Egoísmo meu, procurar a companhia de alguém na situação dela. Éramos só dois sós se acompanhando.

   Sentei-me, olhando novamente para a menina-sombra. O que se passava na minha cabeça ao abrir a janela por impulso me atravessou novamente. O ar faltou, arrombei ruidosamente a janela, tragando o mundo, segurando o parapeito. Tremi: ao olhar mais de perto, percebi que a sombra sempre foi minha.