domingo, 16 de junho de 2019

SÓ TEM MEDO DA DOR QUEM AINDA DÓI

Vim te avisar que a amoreira deu frutos hoje,
mas já comi todos, não adianta se apressar:
terás que esperar mais um ano
pra poder borrar de novo a boca e os dedos.
Lembra-se do seu plano de não zarparmos?
De não falarmos, de não definirmos?
Eu estraguei tudo quando bebi o mar inteiro;
quando desnudei o mundo num dicionário;
quando no não dito coube a evolução de uma espécie.
E até agora, meu amor, a vida me parece uma longa espera.

É esquisito como quanto menos a gente tem
mais a gente quer - quanto menos frutas conhecemos
mais comemos os mesmo erros.
Aos treze, eu disse: "Não quero amar um desespero"
e confesso que nos minutos estridentes
ainda quero gritar: "Leva!
Estou cansada de estar solta!
Cansada de crescer sem raízes!"
A falta nunca foi do que vai embora,
mas do que nunca chegou.

Não se constrói uma vida inteira sozinha.

Mas o amor, eu descobri, ele é silencioso,
é rasteiro;
acostumado com sussurros,
não entende nada que é grito.
Noite silenciosa, assim lhe ouvi
- falava da parte de trás da Lua:
disse que somos seres de sobra,
o contrário do que sempre se pensou,
porque não somos pra pensar, mas afetar
- não pra viver em apartamentos apertados,
lucrar horas e se depositar em bancos
(se não vê ninguém ao teu lado
talvez seja o caso
de olhar melhor).

Teu amor da minha vida
foi depois daquela curva abrupta
- pra eu cair fora de mim -
e lá estava:
sem medo, criavas esquinas com as próprias mãos.
Comemos unhas de laranjas,
trepamos as amoras,
escalamos jabuticabas,
cuspimos as pitangas
e meu bem, não sei se foram os galhos quebrados
mas me sinto ramificada.
Sobramos -
como sobram ondas no mar.
E depois do último dia em que eu te perder
o pôr-do-sol ainda terá tua cor
(o laranja ensurdecedor)
mas todas as outras horas serão camaleões
e os fins, casulos quebrados;
                                             borboletas.