segunda-feira, 20 de agosto de 2018

SUPERESTRUTURA

Você me cumprimentou com trejeitos de quem vê um fantasma. Respondi a todas as tuas perguntas com a voz fanha, tentando imitar o timbre que ressoa nas narinas depois que se acaba de cheirar pó. Você não entendeu a referência, pois nunca entendeu nada do que eu digo. Meus olhos não focaram, não me lembro de nenhum assunto que permeou nosso bate-papo além de que você citou Ana Cristina César, dizendo que minha escrita era parecida com a dela.
Lá também estava uma menina de cabelos arrepiados e voz grossa, achei ela chata mesmo antes de você dizer que era sua namorada. O ciúme é uma coisa doida, principalmente se tem bases sólidas – eu sei que, depois disso, você vai se ramificar e dizer que eu sou histérica, irracional e impossível; eu vou ouvir tudo isso como elogios. Você nunca entendeu minha incapacidade de escrever em terceira pessoa e se incomodava com o fato de eu escrever à tantos você's. Você nunca entendeu que meus personagens não existem, mesmo depois de virar um, mesmo depois de ler a carta de Ana, falando sobre Gil.
Aliás, Ana é ríspida e ardida, o que me deu dor de garganta e vontade de te bater com as teclas da minha máquina de escrever. Digitá-lo por inteiro, com a máxima força, para furar o papel nos pontos finais. Depois disso, você se achou livre o suficiente para tocar meu joelho duas vezes e eu te odiei muito, do fundo dos meus ossos – é de lá que vem toda a minha dor. Pois, sempre que discutíamos sobre existencialismo, você nunca entendia o conceito de “humanidade”, nunca quis me libertar também. Nunca entendeu que, enquanto eu fosse sua, o toque seria agressão, não carinho.
No fim das contas, lá estava eu, ardida e sem voz. Na década de oitenta, o cinema era o único lugar que dava pra beijar alguém, mas a sexualidade sempre teve um quê de sujo, de podre. Eu quis gritar para todo mundo que seu queixo tava sujo, quis gritar para todo mundo que suas marcas ainda estavam em mim. Olhando para você, vi todas as tuas faltas e faltava qualquer vestígio de mim. Olhando pra você, com olhos trementes, você sorriu. Eu quis te beijar até você morrer sufocado. Pensei: "ah não, ele vai virar mais um texto e eu serei a vilã, de novo, mesmo através de minhas mãos". Cá estamos: você continua sem entender nada; eu continuo sem conseguir explicar.

segunda-feira, 13 de agosto de 2018

LEITURAS

“Quem não se apaixonou
não vai entender esse livro” ele disse,
grifando as passagens mais importantes
com lágrimas literais.
Em um não-ser insuportavelmente justo
e necessário,
descobri novas cores. 
Em um presente passado no futuro
guardei minha solidão para ti,
que a recusou educadamente.
O barco afundou sem ninguém dentro:
nenhum sobrevivente.
          - Eu vou se você vier
mas já havia ido faz tempo.
Meu coração circulava
e, traçando uma tangente,
sentimentos mesclados
me disseram:
nós somos tudo o que eu nunca fui.