domingo, 18 de março de 2018

PALAVRA-CHAVE: PROBLEMA-CHICLETE

          Quando entrei na rua Teodoro Sampaio, todas as palavras entalaram na garganta. Percebi que havia passado o dia sem dizer uma palavra: acordara, estudara, fizera o almoço, lavara a louça, fora pra aula e então, no momento, voltava para casa. Ao abrir a porta, eu só teria uma gata (que ainda não havia aprendido a falar) e um papel que me ouviriam, mas nenhum dos dois estaria apto a me responder. No resto do caminho inteiro, não consegui encontrar sentido em falar com as paredes.
            Ser adulto é isso: ser atormentado pela capacidade de mudez. Ser atormentado por si mesmo, pela parte que saiu pelos poros e assombra sua própria casa. É ver em todo o reflexo uma parte desconhecida e não conseguir sustentar nem o próprio olhar. Na pia do banheiro, passei uma água no rosto e estalei o pescoço, me perguntando quando aquela crise ia passar. Foi quando entendi o conceito de eternidade.
            Fiz chá e sentei na cadeira em que meus pais leem o jornal toda a manhã. Olhando as paredes daquela sala (que mais se assemelha à um museu), percebi que às vezes o silêncio que os dois fazem quando dirigem, quando comem, quando esperam não representa o que se passa na cabeça deles. O óbvio chegou esbofeteando a minha cara e, de tão óbvio que era, me assustei: os adultos não sabem de tudo. Na verdade, não sabem de nada - e isso deixa um ponto sem nó confuso e solitário. Entendi o desespero de minha mãe quando eu chegava com um chiclete grudado no meu cabelo e chorava porque não queria cortá-lo, quando ela se deparava com a concretude das crises sem soluções.
         Fui lavar a xícara, constatando que eram apenas 21:34 e que a noite ainda se estenderia por mais 2 horas. Cantei, como havia pensado em fazer quando ficasse sozinha. O importante dos momentos de crise é que eles põem toda a teoria em prática. Eles nos obrigam a decidir quem seremos no futuro, começando pelo presente. Cada decisão que tomamos em relação a como enfrentar nossas perturbações se reflete no dia seguinte, quando se acorda e dá de cara com uma nova crise (ou a mesma), dividindo a cama com você. Olhei minha crise nos olhos e disse: "tenho medo". E o que  mais me assustava era perceber que, se os problemas aumentam em PA, o cansaço aumenta em PG, e num piscar de olhos os valores são tão exorbitantes que não dá mais para se ler nada (o analfabetismo emocional é a índice que mais aumenta ao redor do mundo). Ninguém sabe o que fazer com essas palavras que nunca se ouviu falar.
Mas fazem: meu pai, por exemplo, puxava minha orelha quando queria que eu escutasse alguma coisa e fica em silêncio enquanto come o cereal à noite; minha mãe, por exemplo, chega atrasada em todos os compromissos que marca depois do almoço e cortou o mal pela raiz, pois não havia tempo para esperar o cabelo crescer e arrancar o chiclete dele. O problema precisava parar de existir naquele exato minuto - o que não o impediu de crescer novamente. E, distraída, repito o erro e grudo o chiclete de novo. Mas hoje aprendi que dá pra tirá-lo passando óleo de cozinha. Isso é crescer: passar óleo e arrancar os problemas do couro cabeludo ao invés de deixar de ser cabeluda, como os próprios problemas.
Enchi a frigideira e fiz pastel de ventochicletecabeloeproblemas.

sábado, 10 de março de 2018

PEDRA SOBRE PEDRA

Eu assisto minhas rugas,
respirações e certezas
se tornarem mais profundas.
Eu assisto a cidade
de manhã e de tarde
com a cabeça nas nuvens
e, entre pipas e aviões,
tento entender os dois.
Eu dou risada
da nossa desgraça calculada
para conseguirmos sobreviver,
mas que deixa as marcas
da inutilidade do sofrimento.
Afinal de contas:
"é preciso imaginar Sísifo feliz".

Eu me olho de um jeito
que nunca ousarão olhar:
é amor que vejo,
não luxúria, medo ou desejo,
pois no meu sangue corre o vermelho
do começo de todas as revoluções.

quinta-feira, 1 de março de 2018

SONHO

Ana se banhou na água
Clara, que tentava entender a gente.
Elisa sentiu a brisa
do mar que não chegava.
Gil não sentiu
nada além de palavras.
Isabel olhou pro céu
e contou nos dedos dos pés
as nuvens.
Joel não banhou ninguém,
nem o desconhecido.

Ele representa o amor que virá:
que a gente sabe;

que a gente sente.