sábado, 27 de maio de 2017

NARCÍSICO

Poemas, músicas e retratos
se baseiam na pura e simples identificação.
As lágrimas que rolam,
sobem e descem feito escadas
que rolam também,
são produzidas pela dor do outro
que dói na gente.

Meus sentimentos são transgênicos,
pois fiz com que parte dos outros
também fosse minha.
Não choro pelos reflexos
que gritam na cara tudo o que já se sentiu
mas nunca havia sido explicado:
choro pelo grito no vácuo,
o que impede qualquer partícula de sentimento
de chegar até aqui.

Nunca rive superfície reflexiva
que me mostrasse quem eu sou.
Então comecei a produzir espelhos
e me afogar nas imagens.

Vivemos com 5 quatriliões de toneladas
de ar em cima de nossas cabeças
e não percebemos
pois já estamos acostumados.
Eu nasci oca
(igual santo do pau oco)
e não percebi,
pois já estava acostumada.
Mas o saco ta ficando cheio
e cada vez incomoda mais
ter tanta coisa aí fora
e nada preencher aqui dentro.

sexta-feira, 12 de maio de 2017

IMSOMNIA

Há a insegurança de entrar no quarto cedo demais
e ficar presa entre o instante de ir dormir e o antes dele,
onde reina um claro hiato
que noites frias e sem estrelas
trazem pros olhos que piscam longamente
e viajam pra além do sono.
Ele foge quando vê a lua,
porque uma vez em sonho foi lobisomem
e de pesadelo já basta um.
O cansaço corre e me abraça
quando o sol nasce dizendo que o dia raiou
mas não escuto:
o olho segue a poeira que pulou da coberta
até estabacar-se no chão.
A porta aberta indica um novo dia
em que tudo segue em uma estranha harmonia
inclusive ao deixar
a noite acabar ao pé da porta

na insegurança de entrar no quarto cedo demais.

terça-feira, 9 de maio de 2017

TÁ TUDO UMA BAGUNÇA

E agora não é o quarto ou a sala:
não são as roupas
espalhadas pelo chão
ou a cama que eu,
de manhã e de tarde,
deixei por fazer.
Se fosse isso, eu ia embora:
desapegava de tudo material que me cerca,
desapropriava tudo que me apropria
e me mudava pra quatro paredes
sólidas e concretas,
lúcidas e opacas.
Mas as roupas estão dobradas,
guardadas e organizadas em armários
sólidos e concretos.
A cama está sem oscilações
feita para eu me deitar
lúcida e opacamente.
Mas eu não me deito:
me viro e desviro
esperando a implosão das estruturas
que me reverterá em quatro paredes:
sólida e concreta,

lúcida e opaca.

quarta-feira, 3 de maio de 2017

QUE VERDADES SEJAM DITAS, NÃO PENSADAS


Ontem tive um sonho
de um filho metade filho
metade gato,
pois falava igual a mim
mas ronronava felinamente.

Ele me chamava pra dormir junto à ele
(igual filho pede à mãe
de madrugada
porque teve um pesadelo
ou porque quer um copo d'água)
pois eu estava me sentindo sozinha
segundo ele, e
sua cama era maior que um novelo.

Ele me dizia o seu nome
pois com tantos meses de nascido
eu não lembrava mais:
pra mim era filho,
pra ele era Breno,
pra minha mãe era nome nenhum
mas no cartório não tem registro algum.

Com sua cauda felina
ele rodopiou na cama sem parar
enquanto com minhas mãos frias
eu tentava o lençol arrumar.
Com suas patas felinas
pulou da janela sem pensar,
afinal, no gato há o instinto
de ver o infinito
e se atirar.

Hoje cheguei na conclusão
de que nunca amei ninguém
como amei aquele filho-gato.


É uma pena que ele tenha pulado da janela